Para um ano bão

Há um poema do Drummond que desde que o li pela primeira vez, por esses tempos de fim de ano, me volta a memória, principalmente pelo fato de falar de ano novo, merecimento, mudança.
Somos simbólicos pois significamos. Há um sentido no entorno o qual muitas vezes não  temos a consciência, simplesmente estamos inseridos, afetando e sendo afetados. Nessa dialética que nos situamos torna-se possível atribuir marcos, um deles é esse que se aproxima, virada do ano.
Em minha cidade existe um fato que marca essa passagem. Em toda virada de ano, as crianças saem cedo de suas casas batendo de porta em porta gritando : "ano bom (bão)!!", as pessoas já preparadas para isso, compram doces para dar as crianças que batem a sua porta. Interessante pensar que por aqui, começamos o ano distribuindo doces a cada desejo de ano "bão" que recebemos. Talvez essa seja a receita que o povo daqui aprendeu para se ter um ano novo, um ano bão!
Entretanto quando falamos em novo, pressupomos que existe um velho, aquilo que já se foi, lógico, se o ano é novo existe outrora um velho. Para que o novo apareça é preciso ter seu espaço. E nós, seres finitos, limitados, não temos outra alternativa que se não abrir esse espaço e, não há melhor maneira que senão desalojar o que é velho, há quem fala que é preciso 'matar' o velho para que o novo apareça, ou, não se é possível encher um copo cheio d'água. Matar o que fomos para nascimento do novo em nossa vida. Exatamente nessa dialética, morte e vida não necessariamente severina. Creio que seja o desafio lançado sobre nós a cada passagem, a capacidade de re-criar. 
Falar em novo é também falar em ter coragem de se lançar em lugares desconhecidos, " mesmo o mais corajoso entre nós só raramente para aquilo que ele realmente conhece", andar no escuro é coisa para poucos, o escuro sempre tem um tom assustador, nos remete ao medo das ameças noturnas que toda criança alimenta. Ter coragem de sair da zona segura milimetricamente moldada para seja enfim comoda é o desafio. Ter a coragem de parar de ficar repetindo sempre o mesmo blábláblá de reclamações que sempre, no fundo, remete a mesma coisa. Radicalmente, ter a coragem de pagar o preço de parar de sofrer e sentir enfim gozo pela vida.



RECEITA DE ANO NOVO

Para você ganhar belíssimo Ano Novo 
cor do arco-íris, ou da cor da sua paz, 
Ano Novo sem comparação com todo o tempo já vivido 
(mal vivido talvez ou sem sentido) 
para você ganhar um ano 
não apenas pintado de novo, remendado às carreiras, 
mas novo nas sementinhas do vir-a-ser; 
novo 
até no coração das coisas menos percebidas 
(a começar pelo seu interior) 
novo, espontâneo, que de tão perfeito nem se nota, 
mas com ele se come, se passeia, 
se ama, se compreende, se trabalha, 
você não precisa beber champanha ou qualquer outra birita, 
não precisa expedir nem receber mensagens 
(planta recebe mensagens? 
passa telegramas?) 

Não precisa 
fazer lista de boas intenções 
para arquivá-las na gaveta. 
Não precisa chorar arrependido 
pelas besteiras consumadas 
nem parvamente acreditar 
que por decreto de esperança 
a partir de janeiro as coisas mudem 
e seja tudo claridade, recompensa, 
justiça entre os homens e as nações, 
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal, 
direitos respeitados, começando 
pelo direito augusto de viver. 

Para ganhar um Ano Novo 
que mereça este nome, 
você, meu caro, tem de merecê-lo, 
tem de fazê-lo novo, eu sei que não é fácil, 
mas tente, experimente, consciente. 
É dentro de você que o Ano Novo 
cochila e espera desde sempre.


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