...um prosão...


Para mim, a coisa mais difícil quando quero escrever algo é começar o texto. Por muitas vezes a inspiração está pronta, gritando dentro de mim. Mas o ato de transgredir, fazer a passagem do que falo internamente para o papel é sempre algo penoso. Primeiro pelo motivo das motivações estarem sempre acompanhadas, misturadas, emendadas e por fim costuradas umas as outras, tanto que, muitas vezes, a idéia está pronta a ser trabalhada, começo o esboço e de repente, não mais que isso, entra um assunto que a primeira vista não tem co-relação nenhuma com o assunto em questão, decorre-se o texto como um monte de ideias jogadas ao vento. Conforme a escrita acontece, conforme a abertura acontece, as ideias, ligações vão brotando. Como se as motivações fossem retalhos e as idéias fossem a agulha com a linha que une as motivações formando uma colcha.
Recordo que certa vez escrevi um texto sobre canteiros. No texto éramos como jardineiro que plantava em cada canteiro um tipo de flor diferente, afirmava assim que nossos sentimentos, aquilo que somos, também possuía essa organização. Como se cada manifestação da gente tivesse um lugar específico dentro da gente, canteiro da alegria, canteiro da tristeza, canteiro do amor, canteiro do perdão. Hoje percebo que somos diferentes disso, somos um único canteiro com as mais variadas flores. Há aquelas que mesmo misturadas às outras conseguimos cuidar mais, melhor, acreditamos ser melhor que aquela naquele momento ganhe mais atenção que as outras. Pois se cuidássemos de todas, a todo tempo, seria muito penoso e não conseguiríamos. Nosso canteiro é uma vastidão de flores , bonitas e feias, alegres e tristes, que levamos a vida inteira cuidado, cultivando, tirando mudas e plantando novamente. Nossas flores, nossas marcas, nossas cores, nossos aromas, nossa vida e, através disso que conseguimos fazer com que o outro tenha acesso a nossa vida, deixamos nossas marcas assim em quem por aquele tempo caminhou em nossos canteiros.
Assim como deixamos nossas marcas, também somos marcados. Em diversas esferas de nossa vida temos sempre uma referencia. Olhando um pouco para minha vida posso perceber alguns desses sinais. Onde faço estágio minha referencia direta é meu orientador, de certa forma aprendo a cada dia a pensar e enxergar nos experimentos que fazemos um pouco como ele também enxerga e faz. Nas aulas de violão a mão que dedilhava as cortas era um tanto parecida com a do professor. Com relação aos nossos pais, para quem não conviveu ou mesmo quem conviveu, as figuras paternas e maternas que temos em nossa vida. Muito do que diz a respeito de nossa identidade relaciona com o relacionamento que tivemos com essas figuras, melhor, com as marcas que essas figuras deixaram na gente. Entretanto, tal marcas que deixamos ganhar durante a vida nunca são estáticas, vivem dentro da gente em constante mutação. Temos a graça de fazer ressignificação das referencias, das marcas e cultivar delas coisas boas, para o ser-mais.
Definitivamente não nascemos do jeito com o qual nos encontramos hoje, somos formados na linha do tempo, no entanto, não seremos como somos hoje, pois, somos formados na linha do tempo. Vivemos seguidos processos de catarses e re-construções.
Por vezes, quando ouço “sou assim mesmo”, logo me vem à mente a palavra: acomodação. Naturalmente, temos uma coluna vertebral que marca nossa identidade, já percebeu que quando começamos a conviver com outra pessoa por algum tempo, logo já esperamos um determinado tipo de resposta ou atitude frente a algo, apesar de, considerar isso sempre um risco de fecharmos o outro em um estaleiro e, tudo o que de novo que este outro produza cause estranheza somente e não alegria pelo novo que irrompe.
 As respostas que temos diante da realidade também podem ser mudadas com o tempo mediante as diversas ex-peri-ências que passamos. Aquele velho clichê, experiências são para crescimento pessoal. Pode ser algo repetido, mas não longe do que é verdade. Nossas experiências nos modulam como pessoas pelas leituras que temos de cada acontecimento, pelos significados que atribuímos a cada situação. Diferente do ser infante, para eles os significados são atribuídos pelos outros. Uma criança só descobre que sente tristeza quando o outro, uma referencia, olha para a sua reação e diz, está triste! Crescer é ser capaz de dar significados, além, re-significar ocasiões e marcas deixadas pelo o outro em nós, que esse mesmo diferente de você apareça com seus significados, nisso inclui que crescer é a capacidade que adquirimos de optar e, só escolhemos quando descobrimos que somos primeiramente livres. Por fim, mas não finalmente, crescer é a capacidade que temos de escolher e bancar nossas escolhas.
No entanto, todo caminho há um risco, um desses é de cair no imediatismo tão pregado ultimamente com as receitas de felicidade e sucesso no estalar de dedos, não deixa de ser sedutor, temos a tendência natural de querer correr daquilo que a principio trará desconforto, as situações novas não trazem isso para as pessoas muitas vezes, logo, nada melhor que o mapa do tesouro para chegar ao objetivo tão almejado. Mas algo é claro nisso tudo, cada pessoa possui seu ritmo de dar conta das coisas, por muitas vezes, podemos ler, ouvir diversos conselhos ou experiências a respeito de uma situação pela qual passamos. Quantas vezes já falamos para aquela pessoa, olha, não faça isso, pondere, relativize, esse caminho não leva a lugar nenhum e, ainda assim, a pessoa faz, e mais, repetidas vezes e, os olhos não enxergam. Ou ainda, talvez até mais triste, sinto que isso acontece com a maioria das pessoas, enxergamos o erro, identificamos a postura que precisamos mudar, nos dispomos a fazer diferente, até começamos a trilhar outro caminho, fazemos outras posturas mas, o tempo passa, as coisas que pareciam diferentes, na realidade são as mesmas posturas, apenas com maquiagem diferentes. Já perceberam o quanto de coisas iguais aparecem, ou fazemos pensando em fazer diferente mas que no fundo nos leva ao mesmo lugar, um ciclo. Temos essa tendência natural.
Há coisas em nossa vida que possui raízes tão profundas que leva um tempo muito considerável para ser desenraizadas, há ocasiões em que o sujeito fica plantado naquilo por uma vida toda, repetindo, repetindo, repetindo. Porém cada um tem seu tempo, já disse em outra ocasião que somos compostos de dois tempos, aquele que se refere ao tempo compassado e linear do relógio e aquele tempo nada compassado e linear do nosso coração. Algumas de nossas necessidades acontecem na medida do tempo do relógio, outras, são medidas do tempo do nosso coração. Na saudade, por exemplo, o tempo do nosso coração se torna tão mais importante que o tempo do relógio.
Quando criança ouvi uma estória sobre uma floresta, não a lembro com detalhes, mas acho que consigo transmitir a mensagem dela, assim, existia uma floresta com muitos e muitas animais, elefantes, leões, macacos, girafas, coelhos, raposas, passarinhos, perto dessa floresta havia um lago...um dia muito quente, muito mais que o normal, aparece uma fumaça negra no céu, todos os animais ficam curiosos para saber e vão até lá. Chagando lá, virão que era um fogaréu destruindo tudo, imediatamente, os animais colocam a correr para longe do fogo, por medo, todos preocupados por estavam perdendo o lar. Os passarinhos muito mais espertos voaram rápido para longe, enquanto os outros animais corriam por terra, chegando em frente ao lago, deparam com os passarinhos enchendo o bico de água e correndo de volta para o fogo. Logo o elefante falou:
-Por que fazem isso, não sabem que é inútil levarem tão pouca água que conseguem carregar no bico para apagar o fogo?
Um passarinho parou e respondeu:
-Pode ser inútil, mas não podemos deixar de fazer o que podemos para tentar salvar o nosso lar.
Não me lembro do final da história, seu eu fosse aquele elefantes na mesma hora, teria enchido minha tromba com água e voltado para enfrentar o fogo. 
Há muitos contextos que essa história pode ser usada e, claro, interpretações. Destaco duas coisas mais nítidas para mim, primeiro é a capacidade que o passarinho tem de carregar a água o bico, certamente o elefante tinha razão e falar que pouco adiantaria levar aquela quantidade de água para apagar o fogo. Mas aquela quantidade de água era aquilo que estava ao alcance dele para combater, confrontar o fogo. Era aquilo que naquele momento conseguiam fazer para apagar as chamas. E a outra é a própria atitude de enfrentar o fogo. Supondo que dentro da gente há um foco de fogo que corremos para longe dele e nada fazemos para apagar-lo por medo, nem o mínimo de nossa capacidade fazemos. Não precisamos ser um elefante capaz de levar muita água e nem um passarinho, precisamos sim enfrentar o fogo, enfrentar as marcas dolorosas  que não queremos ver com a nossa capacidade em nosso ritmo.
O que grita nisso tudo? Liberdade aliado ao amor. Somos capazes de mudar porque entendemos que somos livres. Queremos mudar para melhor porque entendemos que somos amados e capazes de amar. Percebendo livres em tomar atitudes podemos apagar o fogo que destrói e devasta todo o nosso ‘lar’. E, não adianta, ninguém acorda amando ou dorme livre, não segue a regra de soma em que dois mais dois é quatro. Em se tratando de nosso tempo interno dois mais dois pode ser igual a três ou mesmo zero. Tudo é muito relativo.
Sabem aquela máxima ‘penso, logo existo’. Pois, existimos também por aquilo que não pensamos. Nas ocasiões de nossas vidas é que somos revelados, em uma fala, em uma ação. Já pensou em quantas coisas fazemos ou falamos sem que percebamos e de repente, “nossa, fiz isso”. Necessário é aceitar aquilo que de repente aparece saindo da gente sem que nós mesmos conhecêssemos de nós mesmos. Pelo amor começamos a aceitar nós, mesmo aquilo que não conhecemos. Agora, sabemos mesmo todas as motivações sobre as nossas ações? É necessário saber?
Penso na possibilidade de superar limites. Lembro de um livro que li há muito tempo “ tempo de transcendência” autor Leonardo Boff. Defende que somos seres ilimitados e convidados para viver no infinito, pautado pelo nosso desejo incessante. Convida-nos ainda, ultrapassar fronteiras pessoais, ir além do que se vê sob o pilar da coerência dentro da história de vida de cada um.
Fui aguçado por esse tema depois de ver o filme “mãos talentosas”, conta a história de um neurocirurgião que mesmo com tantas limitações que a vida o impôs conseguiu se tornar um médico e criar novos meios para tratamentos de certas patologias que até aquele momento não haviam sido feitos. Fico impressionado! Quando mais a gente mergulha no que diz de nossos desejos, mais nossa capacidade criadora surge. Chego até a pensar que Deus fez o mundo, animais, plantas, mas para nós humanos deu-nos a tarefa de sermos continuadores da criação, por isso acredito tanta criatividade. Veja bem, não questiono aqui, evolução, seria outra conversa que quem sabe mais para frente. Levanto e tento levantar os seus para a graça de podermos ir além das fronteiras que imaginamos estar circundado.
Há outro exemplo que acredito que muita gente conhece a história de João Carlos Martins, o pianista e regente, quem ainda não sabe, trate de saber. Um pessoa que mesmo com tantos contratempos (soa até eufemismo) fez sua paixão pela música prevalecer. A última apresentação que vi foi antes do jogo da final do campeonato paulista de futebol, na ocasião ouvimos a re-criação do hino nacional, impressionante! Se eu não fosse santista desde de pequeno e jogo não fosse tão angustiante, já teria valido a pena ter assistido. Fico admirado com a postura dele diante da vida, certamente, sentiu desanimo, quis desistir, mas prevaleceu seu desejo sua paixão, ainda bem para ele e para nós.
Estudo na faculdade de farmácia faço estágio no laboratório de nanotecnologia. De instante a primeira vez que consegui imaginar o que seria uma nanoparticula, fiquei maravilhado e confesso com muito medo, pois naquele momento eu estava sendo apresentado para um novo mundo, um mundo das coisas pequenas, simples-complexas de retirar o máximo do mínimo. Mas, então, minha mente começou a criar formulações, o que eu poderia criar com isso tudo. Fui estudar, ler os “astigos” (RS!), revisões, sinto que consegui dar um passinho a mais, no entanto, diante desse pequeno e gigantesco mundo o qual desvendo, quando mais estudo, mais vejo que pouco sei...desanimo, as vezes sim, as vezes também perdido (quem disse que perder-se também não é um caminho?), mas quando paro e penso o quanto posso criar diante disso, sinto aquela paradinha no coração, respiro fundo e dano a ‘nanoencapsular ideias”. Gosto também de tocar violão, não sou nato, nem vou ser, mas quando aquele dedinho consegue chegar na nota tão difícil, alegria tremenda. Não é algo tão grande quanto o que fez o neurocirurgião e muito menos o que fez João Carlos, mas pessoalmente os pequenos passos aparecem com motivação e olhar para a vida do outro e ver que sim é possível transcender e criar ou re-criar. E por fim descobrir que nossos maiores atos são feito no silêncio, sem que ninguém saiba.
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Quando olho para trás, consigo perceber que cada momento da minha vida foi marcado por um poema. Hoje em minhas rotineiras insônias estava a pensar nisso, “naqueles dias aquele livro tal me ajudou tanto”. Teve uma vez que voltei a morar em Ouro Fino, fiquei por lá durante seis meses, um tanto desiludido com tudo, com os caminhos ainda obscuros, com o coração sem saber para onde apontar e eis que surge em minhas mãos um livro de sonetos do Vinicius, até aquele dia nunca tinha dado tanta importância para esses poemas, na minha cabeça sabia que ele falava coisas bonitas e marcantes capazes de estremecer um coração mesmo que já congelado pela vida. Nessa ocasião, durante a noite eu costumava ficar só em casa, sabe aquela pergunta: “o que você faz quando não tem ninguém te vendo?”. Então, eu recitava os sonetos daquele livro, foi ali que senti, realmente, o primeiro prazer em ler, sentir, usufruir das palavras, uma a uma, como se cada uma delas fossem mais importante que todo o soneto, agora faço memória e repito:
De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.
De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.

Tente você também, se for tímido como eu, espere um tempo que esteja sozinho, e fale bem devagar cada verso. Uma dica: não se preocupe em entender o que está lendo logo de início, conforme você vai falando, as palavras vão ganhando um sentido único, sentido que só você irá conhecer.
Ainda há outro que descobri a bem tempo já, um verso que arremata todo poema é o que carrego para mim:
“(...) Descobri que a seu tempo vão me chorar e esquecer. Vinte anos mais vinte é o que tenho. Nesse exato momento do dia vinte de julho de mil novecentos e setenta e seis, o céu é uma bruma, está frio, estou feia, acabo de receber um beijo pelo correio. Quarenta anos! Não quero faca nem queijo. Quero a fome.”
Foi quando descobri que melancolia é um sentimento que nos tira a fome. Não existe nada de concreto que faz o coração ficar satisfeito, muitos não acreditam, acham que depois de ter tal coisa, depois de viajar para tal lugar, depois, depois, depois, alegria felicidade é algo muito urgente para ficar para depois, aprendemos com a Clarice “tenho urgência de felicidade”. Sinto que quando Adélia escreve isso, na verdade ela fez uma bela de uma oração, ela aprendeu que é preciso ter fome, pois saciá-la perderia o sentido, a arte de cada um, imagino que venha desse ponto, da fome pela vida, pelas coisas, pelo outro. Quando outro poeta fala “Salva-me ó Deus da dor do amor não satisfeito, e da dor muito maior do amor satisfeito”, alimenta da mesma fonte que  Adélia.
“Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.”
Assim que decidi não mais seguir o caminho do seminário, esses versos do poema de sete faces estiveram comigo e ligado a eles outro trecho do livro pequeno príncipe, quando um personagem, agora não estou me recordando bem estou sem o livro aqui,  “muito poético, mas pouco prático!”. Quando me deparei com essa frase, depois de já ter lido esse mesmo livro mais de uma vez ( o pequeno príncipe é uma obra para vida toda ), as coisas começaram a fazer mais sentido, acredito que se em algum momento ele não falasse nesse ponto as coisas iriam ficar vazias. Não adianta investir nas rimas, em fazer algo bonito se isto não é capaz de modificar algo, percebi que nada adianta confabular aqui dentro se não exponho, se não coloco a mão na massa, sem isso tudo ficaria na fantasia, ‘bem vindo ao real-saulo’, lembro de um padre falando isso e, percebi ali que esse real, sua morada é só por meio da prática da vida de mãos dadas com o desejo, com a fome.
Agora, não posso falar de poesias que me marcaram, sem falar em dois que sempre que leio ou ouço me faz parar tudo e admirar:
“Amor é a coisa mais alegre
Amor é a coisa mais triste
Amor é a coisa que mais quero
Por causa dele falo palavras como lanças

Amor é a coisa mais alegre
Amor é a coisa mais triste
Amor é a coisa que mais quero
Por causa dele podem entalhar-me:
Sou de pedra sabão.

Alegre ou triste
Amor é a coisa que mais quero.”
  Adélia Prado
E, sempre que esse sentimento mostra um pedacinho seu, é uma das primeiras coisas que penso, mas para mim mudo apenas o último verso “alegre ou triste, seu amor é o que mais quero!”, por vezes isso não é muito bem entendido em ambas as partes, por diversos motivos que no momento não vem ao caso, mas sinto e vejo acontecer que quando não é realizado esse sentimento se torna poesia, seja não poesia dos versos, seja na poesia das palavras fazendo com que os versos do Oswaldo Montenegro ganhe mais sentido “Porque metade de mim é amor e a outra também!”.
Por fim, Conforme a vida acontece vamos ficando diante de nossos próprios retalhos e deles, livremente podemos costurar para formar uma colcha de retalhos a cada dia mais, mais parecida com aquilo que nos faz pessoas autenticas.

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